O livro Psicanálise dos Contos de Fadas, escrito por Bruno Bettelheim, é uma obra muito conhecida e apreciada por aqueles que se dedicam ao estudo da psicanálise, especialmente a psicanálise infantil e da literatura fantástica. Publicado pela primeira vez em 1976, este livro continua a ser uma referência essencial devido a sua proposta inaugural de analisar os contos de fadas segundo as fases do desenvolvimento infantil propostas por Sigmund Freud e seus contemporâneos na psicanálise.
Bettelheim, um sobrevivente do campo de concentração de Dachau, fez do horror de suas experiências um vasto material de observação do comportamento humano e reflexão sobre os elementos de sua causalidade. No fim da guerra, encontra asilo nos Estados Unidos onde passa a trabalhar com crianças psicóticas, especialmente com crianças autistas. Sua teoria de que as emoções da mãe influenciam determinantemente nas aptidões cognitivas e emocionais do bebê o levaram a ser desacreditado, caluniado e difamado no final de sua vida, o que supostamente o levou ao suicídio.***
A principal tese de Bettelheim nesse livro é que os contos de fadas são instrumentos preciosos capazes de auxiliar as crianças a lidar com ansiedades e conflitos emocionais inevitavelmente presentes durante o seu crescimento. Segundo ele, ao apresentar temas universais de maneira simbólica e simplificada, essas histórias fornecem um espaço seguro para que a criança possa explorar suas emoções mais profundas e enfrentar seus medos. Este aspecto terapêutico dos contos de fadas se revela particularmente importante porque é através da narrativa que a criança encontre ressonância para suas próprias experiências emocionais, sentindo-se compreendida e amparada.
Bettelheim argumenta que os contos de fadas diferem de outras formas de literatura infantil devido à sua capacidade de abordar temas complexos de um modo que é acessível e compreensível para as crianças. As histórias frequentemente incluem elementos de dualidade, como o bem contra o mal, que são apresentados de maneira clara e resolutiva, oferecendo um modelo de confronto e superação de adversidades. Isto cria um espaço simbólico onde medos e desejos inconscientes podem ser processados de forma segura.
Um exemplo elucidativo desta teoria é a análise de Bettelheim sobre o conto “Chapeuzinho Vermelho”. À primeira vista, a história parece ser uma simples instrução sobre os perigos de falar com estranhos. No entanto, ao investigar mais a fundo, Bettelheim revela que a narrativa aborda questões de crescimento e sexualidade. O Lobo Mau representa os perigos do impulso sexual inconsciente, e a jornada de Chapeuzinho Vermelho pela floresta pode ser vista como uma metáfora para a entrada na puberdade e para o encontro com os desafios associados a esta transição.
Além disso, Bettelheim discute como a estrutura dos contos de fadas é essencial para seu impacto psicológico. A simplicidade da narrativa e a repetição de determinados padrões permitem que a criança se concentre mais facilmente nas emoções e nos significados simbólicos da história. Ao incorporar elementos como perseguições, obstáculos e resoluções de maneira recorrente, o autor sugere que os contos de fadas ajudam a criança a internalizar estratégias de enfrentamento e resiliência.
Outro aspecto importante abordado por Bettelheim é o conceito de “identificação”. Ele acredita que ao se identificar com os personagens principais, as crianças são capazes de explorar suas próprias emoções e conflitos de forma oblíqua. Quando uma criança se vê como o herói ou heroína de uma história, ela pode experienciar vicariamente a superação de desafios e a conquista de vitórias, o que tem um profundo efeito positivo em sua autoestima e sensação de competência.
Bruno Betelheim nos recorda que os contos de fadas, antes de se tornarem histórias para crianças, eram narrativas populares contadas e recontadas, portanto, modificadas pela cultura, ao longo dos anos. Assim ele nos faz considerar que tais história contenham uma espécie de sabedoria das gerações em que ensinamos uns aos outros como sobreviver às ambivalências emocionais, aos conflitos familiares, às dores do viver conhecidas pelos seres humanos muito antes da invenção da psicologia ou mesmo da Psicanálise.
Em resumo, Psicanálise dos Contos de Fadas de Bruno Bettelheim é uma obra inspiradora que explora as histórias infantis como estratégias ancestrais para superar os conflitos presentes em todo o processo de amadurecimento. O autor demonstra, de forma eloquente e perspicaz, como os contos de fadas oferecem muito mais do que mero entretenimento: eles são ferramentas poderosas que ajudam as crianças a navegar pelos complexos desafios emocionais do crescimento e desenvolvimento. Assim, este livro é uma leitura essencial não apenas para psicólogos e psicanalistas, mas para todos aqueles que se interessam pela literatura e pelo desenvolvimento infantil.
*** Algumas das radicalidades do pensamento psicanalítico são duramente rejeitadas em sua apresentação e depois suavizadas e apresentadas como evidência do saber comum. Na sua observação e trato com crianças autistas, Bruno Betelheim é um dos pioneiros na percepção de que a criança, mesmo no útero, não é indiferente a sua mãe e às emoções dessa, chegando a observar que crianças psicóticas nasciam de mães emocionalmente bloqueadas, indiferentes à vida. Segundo ele, essa frieza atravessava as paredes do útero e comprometia o desenvolvimento da criança.
Aquele momento histórico, ainda contaminado pelo peso da moral vitoriana e pela terceirização para a genética dos fenômenos psíquicos, suas ideias foram duramente rejeitadas e ele foi desacreditado como charlatão. (O que, aliás, aconteceu – e acontece! – em muitos cenários com próprio Sigmund Freud.)
Hoje nós podemos saber, inclusive a partir de decênios de prática clínica, que essa frieza atribuída à mãe pode ser fruto do medo, pode ser uma das resultantes do abandono familiar – muitas vezes presente na figura de um homem que não assume sua responsabilidade como pai, o que na gestação significa cuidador da gestante – do descaso social, do trabalho compulsório ao qual muitas mulheres são submetidas durante o momento da gestação. O autismo é um evento complexo que, como tal, jamais poderia ser reduzido a uma causalidade única e Bruno Betelheim foi duramente penalizado por ousar considerar que havia algo da mulher – e portanto, de sua condição social e política- na criança que ela gera.