“O vento sopra onde quer, você escuta o seu som, mas não sabe de onde vem, nem para onde vai; assim ocorre com todos os nascidos do Espírito.” João 3.8
Uma ideia que tenho desde que comecei estudar psicanálise é: psicanálise não é doutrina religiosa nem um novo corpo de saberes aos quais devo responder.
Por ter formação religiosa, reconheço facilmente as aproximações por buscas de respostas existenciais do tipo mágica.
Isso não quer dizer que Freud não explica, sim, Freud explica, mas essa “explicação” não é fim, não nos dá um modelo para viver.
Quem já fez análise de verdade sabe que ficamos de frente com as implicações de dimensões inegociáveis, o inconsciente.
Enquanto Freud está explicando os outros é uma maravilha, o desafio é quando somos implicados.
Mas quem escapa de buscar soluções e caminhos para vida?
Todos nós queremos viver bem e felizes, seja lá o que isso signifique para cada um.
Ninguém quer conhecimento duro sobre si mesmo senão tiver esperança de modificação, de uma vida melhor, mais intensa ou mais inteira.
Mas como ter com a psicanálise uma relação que seja de fato emancipadora e não uma repetição das buscas ideológicas, filosóficas ou religiosas?
Estou lendo Lacan e a clínica psicanalítica de Alain Didier-Weill, um desses textos teóricos-poéticos inspiradores (apesar, para mim, da enigmática linguagem lacaniana).
Em um dado momento – para falar sobre o passe – ele conta a história de um analisando que o maravilhava pela capacidade de invenção e pelo “modo que metaforizava as questões do real, pela maneira como respondia a elas” e, também pela forma que concluiu sua análise.
Anos depois esse jovem torna-se psicanalista e o convida para ouvi-lo em uma primeira fala pública, qual não foi sua surpresa: encontrar alguém que era tão inventivo, que em sendo educado por uma certa ortodoxia institucional teve empobrecida sua palavra e a sua rica condição de inventividade.
A fala era ortodoxa, dura, sem a criatividade própria das sessões de análise feitas de livre associação de ideias, de pensamentos falhados, de esquecimentos e de palavras quebradas.
“A questão que se coloca é a seguinte: como podemos dar conta de um dualismo segundo o qual haveria um lugar privado, o lugar da análise, do divã, que se prestaria à possível criação do sujeito, e um outro lugar, o lugar público, no qual o analista deve dar conta de sua experiência diante de seus colegas, lugar no qual só se ouve um discurso que, para não destoar da ortodoxia, não mais daria lugar a sua capacidade de invenção? Como, portanto, devemos compreender um tal dualismo?”.
Ele segue dizendo que as sociedades psicanalíticas tradicionais sempre se orientaram nessa direção, só há um sujeito de exceção, Freud ou Lacan, esses seriam capazes de ultrapassar esse dualismo.
O que me interessa aqui é pensar que se a nossa relação com a psicanálise tornar-se focada nos nossos interesses de reconhecimento institucional ou entre os nossos pares e até mesmo como instrumento na representatividade dos nossos ideais políticos ou religiosos, ela perderá seu poder de nos transformar e de mudar o mundo a nossa volta.
E por que isso aconteceria?
Porque por um lado: “tudo o que a instituição quer é reconhecer seus membros, autentificá-los, autorizando-os a serem membros”.
E por outro temos nós, respondendo “sim” a isso para sermos incluídos “[..] O sim consciente é […] um sim no qual o eu proclama que é fiel, fiel porque o fato de que ele diga sim garante que ele é o bom moço, que ele é gentil [..]”.
Aqui permaneceremos na condição de alienação.
Ele faz a provocação: “Será que o fato de que conscientemente o eu diz sim significa que o inconsciente também diz sim?“
Ele vai lembrar alguns discípulos de Freud que disseram “sim” e 20 anos depois negaram tudo a que disseram “sim” eles evoluíram ou sempre tiveram um “não” inconsciente?
Diz ele então que o rompimento de Lacan com a International Psychonalytical Assocation (IPA) passa pelo fundamento praticado e depois proposto por ele: “O psicanalista é autorizado por si mesmo.”
Por isso me parece que força de transformação está em nos entregarmos a análise para dela produzirmos, para que a partir da nossa análise pessoal possamos estudar a teoria, pensar a teoria e produzir modos de relação com o mundo.
Transmitir como quem faz música, como forma de sublimação, isso que se transmite sozinho.
Não é necessário militar em torno de Pixinguinha ou Beatles porque o que eles fazem se transmite por conta própria.
Também, ele propõe, que se transmita como chiste, esse dito espirituoso, essa piada a respeito de nós todos que se espalha sem dono e quanto mais se espalha mais não sabemos de onde veio.
Por fim fico com essa bela advertência de Didier Weill sobre modos de transmissão:
“Há dois tipos de transmissão, essas que é própria ao significante que se transmite sozinho e aquela que depende de militância.
Dizer que […] transmite-se sozinho é perigoso para quem?
Para todos que pensam que Freud e Lacan não podem ser transmitidos sem aparelhos de militância.
O ato de militância baseia-se na ideia de que o pai está fundamentalmente em perigo: se não se milita por ele, ele decairá, definhará”. Deixemos que o vento sopre.