Estou citando de cabeça o sempre incômodo Nelson Rodrigues.
O fato é que a proximidade das festas de final de ano sempre gera uma tensão, por assim dizer, coletiva em meu consultório, eu me explico: no transcorrer do ano cada história é única, cada dor é particular, cada singularidade é absolutamente idiossincrática e é-me muito difícil confundir nomes ou situações. Mas quando vai se aproximando o Natal, surgem tias e avós com o comportamento tão parecido e a angústia presente é tão comum… parece-me que todos, ou quase todos, são tomados pela mesma tensão: como sobreviver incólume às festas de ano-novo.
Eu costumo atender em meu consultório um tipo específico de ser humano que eu, carinhosamente, mas sem perder o rigor técnico, gosto de chamar de bicho de transição: o bicho de transição é um ser humano que deu errado. Os seres humanos que deram certo simplesmente se adaptam ao que exigido deles sem fazer perguntas, é o bom pai, o bom marido, o bom filho, a boa mulher que simplesmente correspondem às expectativas depositadas sobre eles como se essas fossem sua própria pele, por vezes comem ou consomem demais, frequentemente adoecem, mas aceitam bem a explicação vigente e o tratamento. Folgam em consumir-se em analgésicos e anti-inflamatórios e gostam de compartilhar entre si as receitas, os médicos e os comprimidos.
O bicho de transição é um bicho diferente, mas sua diferença não é óbvia; andando assim pela cidade é quase impossível distinguí-los, ele trabalha e pesca, come e consome tal qual o seu irmão, o homem que deu certo, mas entre uma colherada e outra surge uma inquietação, entre uma compra e outra um por quê, entre mais uma bebida e mais um beijo uma sensação de vazio, uma ânsia por algo indefinido que o faz pensar em muitos momentos: nasci na época errada, ou ainda, não sou desse planeta.
Pois bem esse bicho de transição, enquanto os outros estão ocupados em comprar presentes para pessoas de quem não gostam, em comer como se estivessem diante da única refeição possível no ano ou na cor adequada da roupa de baixo que devem usar para garantir boa sorte, amor ou seja lá o que for, fica angustiado com a proximidade dos festejos natalinos; no restante do ano é muito fácil esconder de si mesmo e do mundo que se tem família e história, o trabalho justa ou injustamente serve de pretexto para todos as conversas que querem adiar, para todos os encontros que querem rejeitar: não posso, estou trabalhando é desses argumentos irrefutáveis em quase todos dos nossos ambientes sociais.
Mas no Natal, ah, no Natal, pela integridade de sua vida social, das suas amizades e encontros sexo-sentimentais (afinal, quem vai confiar num perfil de alguém que não tem fotos coma família!?!) deve postar fotos com a família reunida, de preferência em torno de uma mesa farta com uma legenda ao estilo vocês são a razão de tudo que eu faço. Como sustentar isso diante da veracidade do processo psicanalítico? Como presentear a irmã odiosa e o tio violento? Como festejar sem desespero a anorexia da sobrinha e a depressão do pai? E como se calar diante disso?
O bicho de transição tem um quê de herói socrático, ele quer que todos reconheçam que vivem sob sombras para que a partir dessa consciência trabalhem, se coloquem na direção da verdadeira luz. Hélas já sabemos o fim desse mito. O herói será morto e tudo permanecerá tal e qual. O trabalho psicanalítico tem suas regras e não me cabe poupar esse homem ou mulher de suas mortes. Mas trabalho na expectativa ( sim, sou uma psicanalista com desejos!) de que ele ou ela entenda que nossos amores são compostos por memórias construídas e idealizações que tendem a ruir diante dos fatos. Relacionamentos não tem nada a ver com verdade e é impossível viver em sociedade sem se reprimir. Ou como disse Nelson do seu jeito provocativo.